segunda-feira, outubro 31, 2005

Crônica

Nona Corina

odeteronchibaltazar


Nona Corina tinha "problemas" nas duas pernas. Diziam que ela tinha ossos de vidro, pois se partiam à toa. Usava uma cadeira de palha para se apoiar e se locomover pela casa a passos de tartaruga. Ela era a segunda esposa do meu bisavô materno, Estéfano, e morava com o primogênito deste, o Nono Beppi.
Apesar de suas limitações, Nona Corina trabalhava o dia inteiro na cozinha, enquanto todos iam para a roça ou trabalhar no armazém. Cozinhava sentada na boca do fogão, lavava louças apoiada à pia, fazia crochê e os remendos das roupas que usavam na lida do campo, sentada em um banco ao lado da sua cama. E ainda fazia coroas. Coroas para os mortos.
Eu me encantava com a rapidez com que ela criava as rosinhas de papel crepon e ia colocando no arco de arame.
Eram tantas as cores! Brancas e azuis para os pequeninos e as virgens. Lilazes para os adultos. A purpurina colocada nas beiradas das flores deixavam meus olhos cintilantes.
Em vésperas de finados, o quarto dela virava atelier e aquilo tudo era uma festa para a netarada (na verdade, bisnetarada).
Eu tinha uns cinco anos e gostava de ficar com ela enquanto minha mãe tinha algum compromisso fora de casa. E eu tinha minhas razões.
Além de poder ficar na cama (altíssima) com ela, eu ainda podia ter uma chupeta, que era proibida pelos meus pais, mas que a nona Corina me dava na maior sem-cerimônia. Eu ficava horas, ao lado dela em silêncio enquanto ela rezava, sentada no seu banco ao lado da janela, de onde avistava a rua quieta.
Eu ficava imaginando que ela rezava para os mortos de todas aquelas coroas que fazia a cada ano. E eram muitos! Enquanto isso, eu cochilava, embalada pelos murmúrios da oração.
Sua intimidade com a morte era tanta que mandou construir o seu túmulo no cemitério da cidade. Essa coisa toda era bizarra demais para nós. Para ela, uma simples precaução.
Ela demorou a usar seu lugar no cemitério. Partiu em dia de temporal e muita chuva. Eu já era moça e estava longe, na capital, fazendo faculdade.
Lamentei, mas não tive lágrimas para a Nona Corina. Apenas orações, como ela fazia para seus mortos.
Ela devia estar feliz, andando com suas pernas sadias e fazendo flores, muitas flores de papel crepon.

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domingo, outubro 30, 2005

de saudades











de saudades

odeteronchibaltazar

A saudade teceu um manto
sobre minhas palavras
que estão,
agora,
frias e caladas.

Já não adianta
as teias e seus cristais luzirem nas manhãs
pois meus olhos adormecerão
como sensitivas ao toque.
E as vozes dos riachos
entoarão,
à toa,
as cantigas.
E as folhas mortas
esquecerão de dar cores ao outono
ou de abafar o som dos meus passos fugidios.
Já não adianta o amanhecer com suas promessas
pois que a saudade se instalou
definitivamente em meus dias.

odeteronchibaltazar

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saudades

odeteronchibaltazar

E hoje teve a saudade,
triste verdade,
dos versos teus,
dispersos carinhos,
neste meu solitário céu.
E hoje teve a lágrima,
teimosa prova
da falta que me faz
um pouquinho
do riso teu.
E hoje teve a música,
senha nua,
anunciando marota,
teus esperados passos.
Hoje, que triste,
só não teve teu braço,
doce refúgio,
que me esconderia o cansaço,
me fazendo só tua.

odeteronchibaltazar

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de saudades, sempre...

odeteronchibaltazar

Hoje,
me perfumei com saudades,
olhando teu retrato amassado,
lembrança há tempos escorrida,
neste meu mundo quebrado.
Nas sobras do choro,
costuro a vida,
e me escondo da tua ausência doída.
Nas dobras do olho,
já não consigo
desfazer o nó que,
há muito tempo,
eu fiz,
nestas minhas duras esquinas.

odeteronchibaltazar

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Saudade

odeteronchibaltazar

Sei que a saudade vai machucar,
mas saudade
é um presente maroto,
presente de grego,
que sempre me dás,
com tuas flores,
tuas dores,
tuas rimas
e teus muitos amores.
Tão bons momentos,
não poderão ficar
no esquecimento
nestas voltas
que a vida dá.
Guarda-me um pouquinho
em seu coração,
pois sou pequenina,
menina faceira,
tão cheia de manha,
e caibo todinha,
inteirinha em tua mão...

odeteronchibaltazar

quinta-feira, outubro 27, 2005

de segredos











Guardador de meus amores

odeteronchibaltazar

Te contei os meus segredos,
imaginando
te fazer
cúmplice dos meus medos,
te tornar
confessor dos meus pecados
e esperar,
contrita, o perdão.
Fazer terapia descompromissada,
sem horário ou remuneração.
Aluguei teus olhos e ouvidos,
ocupei teu espaço e tuas horas,
pensando estar
incluídos, no contrato,
teus sentimentos
e também teu coração.

odeteronchibaltazar

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Segredos

odeteronchibaltazar

Conta-me das tuas andanças
e das tuas fogueiras que,
em noites insones,
consumiram sonhos e
iluminaram pesadelos.
Fala-me das tuas nuvens
em tempos de chuvas e temporais.
Conta-me dos teus dias,
alegres ou tristes,
diferentes ou iguais.
Canta-me as tuas canções
que entoavas em silêncio
com medo de acordar.
Conta-me de teus suspiros
e de teus soluços
e de teu chorar.
Sussurra-me os nomes
que não queres mais gritar .
Desenha-me os sonhos e as danças
que tens escondidos em tuas mãos.
Alcança-me teus braços e,
depois,
fica para sempre,
quieto,
em paz,
em meu regaço.
Não serás mais triste,
eu te prometo!
Nunca mais.

odeteronchibaltazar

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Secrets

odeteronchibaltazar

As feridas
abertas na tua partida
o benfazejo tempo as fechou.

As lembranças,
guardo-as entre meus lenços
misturadas ao cheiro
das tuas palavras
e cada cor da tua voz.

E embora eu
viva cada música
que escutei contigo em surdina
mantenho-as em mim
silenciosas.

E se irão comigo
assim como tua memória.

Somente o vento contará
em segredos
aos enamorados do parque
as juras que fizemos
há tanto tempo atrás.

odeteronchibaltazar

quarta-feira, outubro 26, 2005

Crônicas















O anel

odeteronchibaltazar

Aos meus sete anos, comecei a ir para a Catequese para aprender a doutrina da religião católica, como faziam todas as crianças da minha idade, no meu bairro.
A doutrina era aos sábados, à tarde, na igreja e era dada por catequistas , que eram mocinhas da comunidade.
Sentávamos nos bancos da igreja, e eu ficava distraída, olhando os afrescos bem pintados da igreja. Eram muitos e todos contando alguma história da Bíblia: o dilúvio e Noé, com os animais todos enfileirados; a sarça ardente com o "fulano" espantado na frente (agora esqueci o nome, e na época eu nem sabia também...); a criação do homem num jardim maravilhoso...hã?
- Hã? hum...o quê?
Era eu, toda atrapalhada, tentando voltar à realidade e tentando responder à catequista:
- O pai é Deus? -- perguntava ela a todos (ainda bem).
E todos gritavam bem alto a resposta, fazendo ecoar na igreja, que me parecia enorme pra minha meninice:
- Sim, o Pai é Deeeeeeus...
- O Filho é Deus? a catequista prosseguia.
E nós, tentando parecer muito entusiasmados:
- Siiiiimmmm! O Filho é Deeeeeeus!
E lá vinha mais uma pergunta misteriosa:
- O Espírito Santo é Deus? a esta altura, eu já estava confusa, mas respondia prontamente, tudo decorado, na ponta da língua:
- Siiiimmm! O Espírito Santo é Deeeeus!
Até hoje, lembro destas perguntas, e as faço ainda...
Mas, deixa estar que nesse dia , eu havia passado no bar, em frente à igreja, onde comprávamos as guloseimas todas e tinha comprado as balas antes da Doutrina, ao invés de comprá-las na volta. Sempre tínhamos uns trocados para as balas e picolés, mas sempre deveriam ser comprados na volta.
Eu havia comprado umas balas que vinham em caixinhas fechadas com brindezinhos de plásticos e que exerciam uma tremenda fascinação em mim. Naquele dia veio um anel de metal dourado com pedrinha de plástico colorido.
Chupei a bala (deliciosa), coloquei o anelzinho no dedo e durante toda a doutrina fiquei a botar e tirar o anel do dedo. Chegou até a cair a tal da pedrinha colorida.
Então, coloquei o anel na boca e comecei a mastigar o metal. Mastiga cá, amassa lá, morde acolá, e ops!
glup...hgun... ENGOLI!
- Engoli o anel! -- falei pra catequista, atenta aos catequizandos.
E desandei num choro convulso, apavorada, fazendo a catequista ficar endoidecida atrás de água (para me fazer engolir melhor o anel, eu pensei na hora).
Muitas águas e lágrimas depois, voltamos à doutrina , mas todos olhavam para mim como se eu fosse uma misteriosa engolidora de anéis...
Pior foi chegar em casa, com minha irmã mais nova fofoqueira, alardeando pra quem quisesse ouvir:
- Mãe, a Dete engoliu um anel!
E a minha mãe depois de ouvir toda a história, fala muito faceira e calma:
- Ainda bem que a Dete mastigou bem o anel, antes de engolir.

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CENA RURAL

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Eu não entendo nada de bois, embora tenha sido criada no meio deles. Meus avós tinham para o gasto da casa, quero dizer, tinham vacas com leite e gado para corte (ui, que medo!).
Vivia brincando nos pastos com bosta, sabe aquelas? Aliás, meus pais se conheceram em uma guerra de bostas. E é uma história muito romântica esta que vou contar-lhes.
Minha mãe tinha ido visitar uns parentes, no Caravaggio (município de Nova Veneza, Santa Catarina), bairro vizinho do Rio Maina, onde ela morava.
Lá pelas tantas da tarde, minha mãe e as primas foram chupar laranjas, mais precisamente vergamotas. Naquela região, tem-se o costume de separar terras com árvores frutíferas; na maioria das vezes, com pés de vergamotas, que têm espinhos para evitar a saída do gado e, ainda assim, os frutos são aproveitados.
Pois bem, estavam chupando as tais vergamotas e ouviram uma conversa do outro lado das vergamoteiras, que eram as terras do João Ronchi (meu avô paterno). Ficaram curiosas e, em silêncio, tentaram escutar algo, mas o que ouviram foi um splashhhh! do lado delas. Era uma enorme bosta de vaca, daquelas moles e bem frescas, que caiu bem perto da minha mãe. Ainda meio surpresas com a petulância daqueles "bugres", não perderam tempo: minha mãe foi à cata de munição e as primas ajudaram-na a iniciar a batalha.
Era um tal de voar bosta para todos os lado, e minha mãe ficava doidinha, evitando se sujar. Um tanto impossível, já que a melhor munição era exatamente aquela mais mole...
Cessada a guerra, com sujos e embostados de ambos os lados, risadas correndo soltas, as duas facções se encontraram e buon giorno daqui, buon giorno de lá. Meus futuros pais ficaram se olhando nos olhos claros e, lá mesmo, no romântico cenário rural, marcaram de se encontrar na domingueira. Ali, naquela guerra de bosta, eu já era um projeto divino...

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Tempos da nona

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Quando criança, lembro tão bem, íamos na casa da nona, depois da janta. Ficávamos todos na grande cozinha a conversar.
Minha mãe falava com meu avô em italiano, e eu me punha, atenta, a escutar, mas nada entendia. Fingia que entendia , mas o bordado não saía do pano. Me contentava com o som gostoso das vozes, como se fossem segredos contados ao pé do ouvido. Ficava meio grogue, me deixando levar pelo som letárgico das falas em dialeto, e aquela cantilena me dava um sono...e de mais nada eu tinha medo.
Queria que o tempo parasse para ficar ali, assim, sentada ao pé dos adultos, no chão vermelho e bem encerado da cozinha. Queria ficar ali, assim, esperando o café com leite e o pão da nona que sempre enchia a mesa farta, a polenta fria, que sempre sobrava do almoço, o queijo "guitchi-guitchi", (um queijinho bem magro que fazia esse som ao apertá-lo, feito pela nona Corina, que na verdade era minha bisnona), o salame, a mortadela...Tudo feito em casa. Dá água na boca só de lembrar!
Quando já os olhos queriam colar, voltávamos para casa, a pé, pelas ruas escuras. Naquela época não tinha iluminação nas ruas do Rio Maina. Minha irmã mais nova ia no colo. Nesse tempo o meu irmão caçula, o Bertino, não era nascido.
Então, nessa hora, eu tinha medo. Muito medo. Agarrava a calça do meu pai e, de olhos bem fechados, pé ante pé, só os abria em casa, tendo até a alma suada.
Lembro da sensação de colocar o pé no escuro sem saber onde o estaria colocando. Lembro do barulho dos nossos passos no silêncio da noite. Lembro do carinho quente da cama, depois desta caminhada. Lembro...
Feliz lembrança, de um tempo gostoso. Tempo tão fugidio! Lembranças tão boas, de deixar a alma lavada.


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A rural do nono

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A Rural do nono Jão era igualzinha a esta aí do comercial. Metade amarela, metade bege. Era o máximo em condução no início dos anos 60, essa Rural (pronunciado com o 'r' bem brando, com a língua bem solta. Nada de erre arrastado).
Descendente de italiano que se preze, troca a pronúncia dos erres todos. Quando é brando, como no caso de 'areia', fala arrastado. Quando é forte como no caso de 'rei', fala suave. Assim era a palavra Rural. Coisa difícil de se pronunciar! A língua não obedecia.
A rural do nono servia a todos os filhos e netos já que, naqueles tempos, nem todo mundo tinha carro, não. Então era um tal do nono levar a gente para cá e para lá que nem se fala. E que emoção! Pena que criança ia sempre atrás, na parte que ficava em cima dos pneus e era duro pra danar, sacolejava que nem burro de carga. Mas só o fato de estarmos na Rural do nono compensava tudo.
Lembro de uma vez que fomos em São Luis, no município de Imaruí, para pagar uma promessa que a minha mãe tinha feito à Beata Albertina. Nós morávamos em Rio Maina, distante uns 200 km mais ou menos.
Fomos na rural do nono. Minha mãe ia com meu irmãozinho no colo, que na época, deveria ter uns três meses. O nome, Albertino, era em homenagem à beata. A minha irmã (com 5 anos) e eu (com 7 anos) fomos atrás no balança a barriga-e-o-estômago.
Enquanto a estrada era sem muitas curvas, tudo foi bem. Mas quando começamos a subir a serrinha cheia das reentrâncias e concavidades não deu outra: vomitei tudo o que tinha e o que não tinha comido.
A cada quinze minutos, o nono era obrigado a parar por conta de meus faniquitos. Eu desidratava por completo, pois logo começou a diarréia por conta do nervosismo. Que situação!
Não lembro o que aconteceu com a minha irmã, pois estava tão envolvida com meu enjôo que não conseguia concatenar uma simples idéia que fosse.
Também não consigo lembrar de mais nada, pois meus neurônios devem ter sumido de tanta desidratação!
A promessa foi paga, meu irmão ficou bom (ele tinha o fêmur deslocado) e a rural do nono deixou de ser um grande atrativo. Pelo menos para mim.
Depois dessa viagem não consigo andar em carros a não ser que seja no banco da frente e não posso olhar para os lados, pois corro o risco de expulsar o conteúdo do estômago.
Se tenho saudades da rural do nono? Tenho, sim. Saudades daquele tempo tão quieto, onde tudo andava com mais calma, onde eu podia marcar cada passo que era dado, guardar cada sorriso, cada lágrima, sem correr o risco de ficar sem tempo. Tenho saudades, sim. Muitas! Saudades até da rural do nono.

odeteronchibaltazar

sexta-feira, outubro 21, 2005

De poetares











Sina de poeta I

odeteronchibaltazar

Neste criar/recriar,
minhas palavras vêm de mim,
mas não são minhas.
Quando as quero,
já não estão.
Alçaram vôo
e estão por sua própria conta
em bocas e olhos alheios,
que espiam seus significados
e desvendam meus mistérios.
Quero um nome,
mas destôo do canto geral.
Nesta sina de poeta,
solitária lida,
tenho tudo,
mas estou tão somente só.
Ó palavras, vivas palavras!
Ainda estarão aqui,
mesmo depois de eu virar pó...

odeteronchibaltazar


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Sina de poeta II

odeteronchibaltazar

Minhas palavras nascem tímidas,
personagens medrosas da minha vida.
Escondem-se em significados singelos
dão sorrisos e abraços
andam soltas nem bem amanhece o dia
passeiam de camisola e chinelos
por poemas insones,
teimosos,
querendo ser amanhecer
querendo estar livres
de qualquer laço
que os prendam
a oníricos estados.
Voam borboletas,
asas úmidas
recém libertas dos casulos.
Gritam cores, brilham sons
em meus secretos dias.
Dançam vívidas,
inconscientes
de sua própria energia.

odeteronchibaltazar

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Poetar

odeteronchibaltazar

Alguém me disse
que poetar era
esvaziar a alma.

Não discordei -
nem disse ok.

Poemar,
é prazer
(chamaria de tesão).

É energia, que,
de mansinho,
enche a alma,
e sai na mão.

É econômica terapia.
É sentimento transmudado
em concreta expressão.
Palavras transformadas -
completa satisfação.

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Inconstâncias poéticas

odeteronchibaltazar

Quantas vezes,
minh'alma louca,
vida pouca,
ao mundo quer gritar...
Mas minhas mãos,
paralíticas,
por demais analíticas,
sufocam-me,
negam-me poemas,
deixando-me sem meu ar.
Noutras vezes,
mudo de espanto,
meu coração nem quer se mostrar.
Mas meus dedos,
teimosos,
com jeitinho,
fazem cócegas,
teclam rapidinho,
e meus sentimentos,
ao mundo,
correndo,
vão mostrar...

quinta-feira, outubro 20, 2005

Crônica










Cine Guarani

odeteronchibaltazar


O Cine Guarani foi um dos personagens da minha infância e adolescência. Era da família. O proprietário era meu tio, então, desde muito pequena, com os privilégios de sobrinha, já assistia a filmes, mesmo com censura dez anos. Alguns eram filmes de terror que eu assistia assombrada, no colo da minha mãe.
O cinema era programa obrigatório nos finais de semana e ponto de encontro dos namoradinhos da época. Aliás, o meu primeiro encontro com meu primeiro namorado foi na matineé do domingo. Lá estávamos nós, no escurinho do cinema e a película se desenrolando na tela. Era um filme qualquer de guerra e eu não conseguia prestar atenção. Tinha mais o que fazer, com tanta emoção rolando no meu coração. Lá pelas tantas, leio o nome de uma das personagens do filme, Emília, e sussurro para ele: é o nome da minha mãe! e ele retruca: o nome da minha também! Fiquei nas nuvens e senti que era um sinal do céus. Deixei que ele pegasse na minha mão sem culpas e saí do cinema na nuvens.
Assisti a todos os filmes do Tarzan com a Jane e a Chita, Mazzaropi e suas estrepolias, os épicos de aventuras como Maciste com seus atores sarados, Ben-Hur, Cleópatra, Sissi e suas românticas aventuras... Marcelino, Pão e Vinho... Todos os de faroeste eu também vi. E toda sexta-feira Santa, à tarde, era dia da Paixão de Cristo. Filas imensas se formavam na bilheteria e muitos assistiam ao filme nos corredores, em pé. Eu vi este filme muitas e muitas vezes e a cada cena triste, eu saía dos bancos e ia para a frente do cinema, onde a minha tia tinha o baleiro e ficava disfarçando até a cena passar. Aí, eu voltava e sentava de novo. Quantas vezes eu fiz isto! Era só aparecer cena de pancadaria ou de sangue que eu corria ao abrigo.
Meus primos é que passavam o filme junto com o meu tio. Era um orgulho pra mim saber que eles estavam lá, na sala de projeção, controlando tudo. Sentia-me poderosa e parte daquela magia.
O Cine Guarani enche-me de lembranças que passam como se fora uma sessão de cinema. Abrem-se as enormes cortinas de brocado verde e me vejo em um filme romântico, com direito a pipoca, cartucho americano ou torradinho. Vale a pena ver tudo de novo... Vale ter saudades em cinemascope colorido. Vale sentir este momento mágico.


odeteronchibaltazar

sexta-feira, outubro 07, 2005











Esquisito

odeteronchibaltazar

Minha vida,
um mosaico arrumado,
de sobreviventes cacos jogados.
Pedaços ajuntados,
em repentes egocêntricos.
Fragmentos descoloridos
compõem meu traçado esquizofrênico.
Partes dispersas,
tentam unir
o meu tipo esquizotímico,
que nem o eletrochoque
conseguiu reunir...
Neste multifacetado composê
em que a vida dá seu toque,
colo os pedaços,
em versos rítmicos,
e os ofereço a você...

odeteronchibaltazar

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Vosso é o ventre

odeteronchibaltazar

Vermelho e túrgido
era o ventre
pronto para sementes,
pronto para fecundos.
Fértil campo,
criação interina.
Preparado o terreno,
crescia o verso,
instalava-se o credo,
corria a vida
em vales profundos.
Era ali que nascia
a palavra,
úmida,
vertendo significados.
Era ali...
E era ali
que eu crescia
pequenina,
uterina,
todos os dias...

odeteronchibaltazar

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InTemporais

odeteronchibaltazar

Escritos de ontem,
pedaços de mim,
já disformes,
procuram-me,
querendo ser amanhã.
Meu tempo escorre,
pede respostas em meu coração solto,
envolto em in/temporais palavras vãs.
Que dizer dos seus significados,
mortos, agora,
deixados de lado,
esquifes depositários de idéias malsãs?
Tem de haver uma hora
em que minhas sonânbulas palavras
acordem e dêem o grito final.
Então,
e só então,
verei que meus versos
não foram em vão.

odeteronchibaltazar

quinta-feira, outubro 06, 2005

Meu amigo Cândido, de Portugal










Poemas para ti todos os dias:


Vou fazer meus poemas mais pesados,
Sem a etérea leveza dum lamento,
Para não mais voarem com o vento
Pró esquecimento desse mar salgado.

Faz deles teus anéis de namorada,
Ornamentando dedos tão gentis,
Vais ver como te sentes mais feliz
Ao senti-los na pele arrepiada.

Não chores os perdidos, afogados,
Guardanapos velhinhos rascunhados,
Em madrugadas de doidas euforias.

A linda e rubra musa que me inspira
Vem me trazer, no som da sua lira,
Poemas para ti… todos os dias.

Cândido, 17/05/2005

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Dobrando esquinas

Minha primeira esquina era uma curva
Que ia desta minha alma para Deus,
Passava por alguns neurónios meus
Teimosos em banhar-se em água turva.

Minha segunda esquina foi dorida:
Sofrido adeus aos meus queridos pais,
Com lágrimas vertidas sobre o cais,
Onde embarquei com rumo à minha vida.

Minha terceira esquina era o futuro,
Aquele salto ousado para o escuro
Onde havia tormentas e cadilhos.

A minha quarta esquina é o dilema
Entre a garota em forma de poema
E a mãe que ainda procuro prós meus filhos.

Cândido, 14/06/2005

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Os teus versos

Estes versos têm algo de divino
Com muito de profano misturado
Como o som ideal dum violino
Nas mãos dum Paganini masturbado.

Estes versos são como orações
Rezadas por ateus ajoelhados;
São expressão de fé das procissões
Em honra dalguns santos debochados.

Estes versos têm expressões de amor
Macias como pétalas de flor
Orvalhadas com beijos de lasciva.

Têm o ritmo, o feitiço e o encanto,
Dum erótico samba que te canto
Na voz dessa cor rubra que cativa.

Cândido, 1/07/2005

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Sonhos de poeta

Os sonhos de poeta são etéreos...
Têm o perfume rubro da loucura,
A leveza macia da ternura,
E a fria solidão dos ermitérios.

Os sonhos de poeta são brancuras
Tão alvos como o linho e a luz da lua
Não têm morada certa, não têm rua,
E perdem-se em utópicas lonjuras.

O sonhos de poeta são sementes
A germinarem trágicos poentes
Duma vida difícil de viver.

O sonho dum poeta estende os braços
A procurar por todos os espaços
Aquele amor que um dia se perdeu.

Cândido, 19/09/2005

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Fraco marinheiro

Eu senti-os partir nas caravelas
E vi mães orgulhosas a chorar
Ouvi poemas com sabor a mar
Dalgum fado vadio das vielas.

E as noivas, corajosas, foram elas
Que lhes disseram: -Ide marear!
E esperaram até vê-los chegar
Com vento de feição nas pandas velas.

Eu nunca passarei além da dor,
Pois nunca fui pra lá do Bojador…
Fiquei aqui esquecido, triste e só.

E agora com os olhos rasos de água
Não sei que hei-de fazer da minha mágoa...
Acho que vou fugir pra Tigipó.

Cândido, 01/10/2005

Conto














Quase-perfeito

odeteronchibaltazar


Não fosse aquela dorzinha insistente na cabeça, estaria tudo perfeito. Luzes acesas, tvs ligadas, todas no mesmo canal, ventiladores girando no teto, ar condicionado ligado no máximo. Tudo fresquinho, quase gelado, agradável na semi-obscuridade solitária da casa. Um sossego..
Sentou no sofá depois do banho tomado, com um prato de frutas: uvas crocantes, deliciosas, geladinhas. Gostava de sentir o bago estourar entre seus dentes e o sumo escorrer goela abaixo. Precisava estar assim, com os bagos bem firmes para ser bom e sentir o croc gostoso na boca. Não fosse a fisgadinha na cabeça, tudo estaria mais que perfeito. Quão pouco precisava para ser feliz! A solidão, a temperatura geladinha e as uvas.
Sozinha, sem compromissos, sem esperas, sem horários, sem cobranças, cabelos molhados e despenteados, camisolão velho e furado em vários lugares por cima do corpo nu, pés em cima da mesa de centro. Como era bom estar só!
Perfeito! Não fosse a dorzinha insistente que nem mesmo o analgésico conseguira anular, ali, naquele momento, seria o céu.
Nenhum barulho lá fora, nenhum carro, ninguém para esperar. Solidão desejada. Solidão amada.
Continuou a comer as uvas e a sentir o estalar crocante e molhado na boca. Olhava a tv, sem prestar atenção. O suco ainda escorria por seus lábios quando caiu inerte, de bruços, no chão sobre as uvas, quebrando o prato.
A dor de cabeça passara, pensou...ah, agora sim, estava no céu.
No dia seguinte, o caseiro da fazenda encontrou-a deitada no chão entre cacos e uvas, mortinha da silva, como explicou ao delegado. A porta estava aberta e tudo assim, ligado e aceso. Pensei que não tinha ninguém e vim apagar as luzes, seu moço, como sempre fazia, explicou depressa.
Ela estava com um sorriso tranqüilo, como se estivesse tudo em ordem. Tudo estaria perfeito, não fossem aquelas moscas voejando ao redor da sua boca...


odeteronchibaltazar


*odeteronchibaltazar mora em Florianópolis SC
É formada em Literatura Brasileira pela UFSC
Tem trabalhos publicados em quatro antologias com autores da net
Participa ativamente de grupos literários da internet.

quarta-feira, outubro 05, 2005


Tessituras

odeteronchibaltazar

Teci meus dias em solidão
e eram de ausências as minhas noites.
Nunca estive tão longe,
e embora eu mantivesse os pés no chão,
meus olhos andavam em
tuas nuvens.
E enquanto bordava meus versos,
olhava no distante horizonte
buscando, de ti, um sinal.
Fiquei tempos sem uma nota,
um cheiro,
sem uma luz ao final.
Agora desisti de estar vazia.
Quero estar plena
buscar outros amores,
cantar outras partituras,
e deixar de procurar por tua mão.
Posted by Picasa
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